No dia que vem por aí

Dezembro 28, 2011

Texto:  Ivan Martins (Revista Época)

É difícil não sentir esperança. A vida parece ter sido feita para isso. Em vez de um tempo contínuo e inacabável, dentro do qual a nossa existência teria o ritmo dos bichos, habitamos um tempo fragmentado, dividido, que se encerra e recomeça por ciclos – de uma hora, de um dia, de um ano. Esses períodos definem a nossa existência e ajudam a dar sentido a ela. Eles fomentam a esperança.

Lembro de uma conversa, já antiga, em que alguém me explicava, do fundo de uma grande tristeza, o alento que recebia de cada manhã. “Hoje”, ela me disse, “eu posso ser totalmente diferente do que fui ontem, mudar a minha vida, mudar eu mesma e começar do zero. Cada novo dia me apresenta a possibilidade de ser outra pessoa e deixar a dor para trás.” Essa não é uma definição soberba de estar vivo? Andamos tão presos ao passado que ignoramos a possibilidade de mudança embutida no futuro. Começar de novo é a maior delas – para todos nós.

Houve um tempo, quando criança, em que eu costumava me imaginar um homem feito. Teria 25 ou 30 anos, seria veterinário ou agrônomo, seria casado com uma mulher com cabelos de índia e olhos de jabuticaba e viveria, com ela e três filhos, numa casinha rural rodeada de colinas, com cerca de madeira e chaminé, como as crianças costumam desenhar. Nesse cenário idílico, que nunca se materializou, eu seria feliz, destemido e generoso, como os heróis dos livros. Sobretudo, eu estaria pronto, teria me tornado um adulto perfeito – e os adultos, toda criança sabe, não têm medos ou dúvidas.

Os anos se passaram e, a cada 12 meses, a criança que eu era se confronta com o adulto que eu sou. A conversa nem sempre é tranquila, mas é fundamental que ela aconteça. O cara que eu me tornei deve satisfações à criança que eu fui. Tem de lidar com os sonhos dela e com as ilusões que ela engendrava sobre o futuro. O homem tem de contar para o menino que as coisas não são como ele sonhava, que a gente não faz a vida exatamente como quer, mas que, nem por isso, deixamos de ser dignos e bons. É importante que a criança dentro de nós saiba, também, que nunca estamos realmente prontos, nunca crescemos inteiramente, e que as nossas dores – e essa é a pior parte da conversa – não somem quando ficamos adultos. Seguem conosco, mesmo não sendo parte de nós. São como espinhos na nossa carne, e é preciso arrancá-los. Existe, afinal, a esperança de viver sem eles no ano que vem, na semana que vem, amanhã.

A moça com cabelos de índia e olhos de jabuticaba tomou outras formas ao longo do tempo. Foi loira, teve olhos castanhos, cabelos crespos. Mas, em cada mulher real, havia algo da Eva infantil, primordial, que eu procurava como se fosse uma resposta absoluta. Aí há outra complexidade que o menino não previra. Parece não haver uma mulher na nossa história, mas várias. Parece não haver uma única resposta, uma única possibilidade. Também nesse terreno (o do amor), podemos tentar, recomeçar, sonhar, sofrer – ter alegrias e surpresas, enormes.

Então, eu penso, que venha o Ano Novo.

Que venham os velhos e novos amigos. Que o amor encontre o seu lugar na nossa vida e que saibamos reconhecê-lo, preservá-lo ou deixá-lo morrer, quando for preciso. Que o ano nos traga coragem para fazer coisas novas, coragem também para lidar com as coisas antigas que deixamos de lado. Que neste ano a gente se encontre – uns aos outros e a nós mesmos – de um jeito que produza mudança e transformação. Sem auto-indulgência, sem auto-piedade, sem mi-mi-mi. Que 2012 venha para alegrar a criança que fomos e nos ajudar a ser os adultos que merecemos ser – no novo ano, na próxima semana, no dia que vem por aí.


Presentes invisíveis

Dezembro 21, 2011

Texto:  Ivan Martins (Revista Época)

Estamos a quatro dias do Natal, época de embrulhar presentes. Sentar no chão, cercado de caixas e sacolas impessoais das lojas, e transformá-las, sem pressa, em pacotes caprichados e coloridos, cada um deles com a cara de quem vai receber. Eu gosto. Não sei fazer compras, mas embrulhar presentes, (assim como engraxar sapatos, aliás) é algo que eu faço feliz, sem entender direito por quê.

Antes de prosseguir, quero fazer um comentário adicional sobre as compras de Natal. As pessoas reclamam, incansavelmente, sobre o quanto é chata, difícil e despropositada essa maratona natalina. Eu tendo a concordar com elas, mas faço uma ressalva importante: parece que as pessoas que menos gostam de escolher presentes são as que têm mais dificuldade em parar de pensar nelas mesmas. Na hora de fazer compras, somos obrigados a pensar no que o outro gostaria de ganhar, naquilo que ele ou ela deseja, e essa parece ser a parte realmente complicada do processo, para muitos de nós. Somos tão auto-centrados, tão intensamente preocupados conosco, que o exercício de se colocar no lugar dos outros, ainda que por alguma horas, provoca exasperação. Quando vai terminar essa palhaçada de Natal para que eu possa voltar, de novo, a me preocupar somente comigo mesmo?

Feito esse desvio, volto ao essencial, que é simples: o melhor presente de Natal é o sentimento que vem com ele. Tenho de fazer um esforço danado para me lembrar do que eu ganhei no ano passado, mas o carinho e o amor das pessoas que estiveram comigo há 10 e 20 anos continuam inesquecíveis. Assim como as mágoas e as dores que elas deixaram. Objetos desaparecem da memória e da nossa vida, mas as felicidades e os agravos a gente carrega para sempre. Hoje em dia, se eu pudesse, daria a cada uma das pessoas que eu amo uma caixinha repleta apenas com um único sentimento invisível, aquele que eu julgasse mais necessário ao momento da vida delas. Acho que seria mais útil que vestidos, camisas ou sapatos. Melhor até que livros.

Eu já desconfiava, mas ficou evidente no filmeAs canções, do Eduardo Coutinho, que as pessoas, sobretudo as mulheres, precisam desesperadamente aprender a deixar as coisas que não deram certo para trás. O dom do esquecimento seria um presente de Natal extraordinário para pessoas que depois de 10, 20,30 ou 40 anos continuam apaixonadas por alguém que nunca as amou. Quem puder, vá assistir ao documentário do Coutinho. Ele entrevista pessoas comuns e pede que elas cantem a canção da vida delas – e explique o que há por trás da música. Em geral são histórias de amor mal resolvidas, que dominam e resumem existência inteiras. Como diz uma amiga que viu o filme, é impossível não chorar diante de uma coisa tão triste. A capacidade de esquecer e recomeçar, portanto, seria um ótimo presente de Natal para milhões de pessoas.

Outra coisa imaterial que anda em falta é a capacidade de escolher afetivamente. Olhe em volta: há muita gente ciscando incessantemente, e não é coisa de adolescentes e jovens. Pessoas de todas as idades não sabem direito o que fazer com elas mesmas. Não conseguem escolher entre o casamento e a bicicleta. Trincam de ansiedade. As possibilidades são tantas, as pessoas tão tantas, as vontades são tantas… que paralisa. Acho que dentro de alguns anos vamos começar a perceber as consequências dessa epidemia de indecisão, na forma de gente inteiramente solta, (pipas ao vento, como eu ouvi uma vez), cuja vida passou ao largo dos compromissos afetivos. Lá na frente elas não terão onde aportar – e nem saberão como, na verdade. Se, com um presentinho de Natal, essas pessoas pudessem aprender a escolher, tenho certeza de que ficariam mais felizes.

O terceiro e último presente que eu gostaria de distribuir em caixinhas com fitas vermelhas é o altruísmo, a capacidade de pensar nos outros. Isso anda muito em falta, na vida dos casais, inclusive. Viramos um bando de egoístas e crianças mimadas. Cada um para si e dane-se o resto. Eu, eu, eu, eu… As pessoas não querem saber de sacrifícios, pessoais ou coletivos. Não podem ouvir falar de deixar seus desejos de lado, ainda que temporariamente. Todos nós temos direito ao gozo já, orgasmo já, realização plena, total e irrestrita, desde logo. Afinal, ralei para isso, não foi? A ideia de apropriação pessoal e instantânea faz parte da nossa cultura, mas está ficando insuportável. A sociedade e o planeta não aguentam sete bilhões de reizinhos batendo o pé e exigindo ser felizes a cada instante. Dentro das famílias acontece o tempo todo, no interior dos casais. Não dá, né? Sem um pouco de doação essa barca afunda – a da vida privada e a da vida pública. Nada de meias, perfumes e gravatas no Natal. Altruísmo para todos, já!


Com voce é diferente

Dezembro 17, 2011

Texto:  Ivan Martins (Revista Época)

Talvez haja homens que sejam os mesmos com todas as mulheres, mas eu duvido. Uma das grandes experiências humanas é perceber – no olhar, na conversa, na cama – que estamos diante de uma pessoa diferente e que tudo mudou. Os velhos hábitos não valem. Os truques de sedução e as fórmulas de reconciliação têm de ser redescobertas. É preciso começar de novo – por isso cada paixão faz de nós pessoas diferentes.

Mas essa não é a percepção geral das mulheres.

Tente explicar à sua nova namorada que você não é exatamente o sujeito que ela olhava de longe e de quem ouviu falar pela rádio peão. Tente dizer a ela que, para o bem ou para o mal, com ela você é outro sujeito: menos atrevido, menos engraçado, menos imprevisível, talvez. Ao mesmo tempo mais romântico, mais leal, sexualmente mais intenso.

Experimente contar a ela que o sexo cinco estrelas (e um Big-Bang) a que ela está se acostumando não existia dois meses atrás, quando você a conheceu. Diga que a máquina sexual em que você se transformou, (cheia de energia, audácia e imaginação), estava guardada num porão há 30 anos, esperando que ela entrasse na sua vida. Conte a ela que você nunca foi um fauno e que agora está surpreso com a temperatura a que água tem chegado.

Ao dizer essas coisas, ao sair do seu casulo de reclusão masculino e admitir que você não é super-homem na ausência dela, talvez você se depare com a incredulidade. “Ah, você diz isso pra todas”, algumas respondem. Pois eu garanto, meninas, que não é assim. Nem todas as mulheres que passam pela vida de um homem ouvem esse tipo de confissão. Quando o sujeito, depois de um tempo de convívio (e de romper várias camadas de intimidade), usa a frase mágica – “Com você é diferente” – acredite nele. Há uma chance enorme de que seja verdade.

O sujeito tem de ser emocionalmente muito burro, quase uma anta, para não se deixar tocar pela diferença. Imagine o cara que transa de um certo jeito com Maria e faz do mesmo jeito com Joana e Tereza. Ele pode ser muito bom de serviço, mas, se entregar sempre a mesma mercadoria, no mesmo pacote, na casa de várias mulheres diferentes, vai deixar várias delas insatisfeitas. E passar por autista. Eu não consigo imaginar algo que precise ser mais à la carte do que sexo.

Claro, cada um de nós, homens e mulheres, repete padrões íntimos. Temos um repertório emocional e físico que tende a reaparecer. Há um estilo e um sotaque na forma de transar, na forma mesma de se relacionar. Isso é parte da nossa personalidade, que vai se definindo com o tempo e com a experiência. Mas essa coreografia sexual não é imutável, algo que se execute independentemente da parceira. Cada transa – ou cada pessoa – tem sua própria música, e o nosso corpo se adapta a ela, se souber escutar. O bom sexo talvez seja o encontro de dois ritmos intimamente compatíveis, ainda que diferentes entre si.

Num mundo como o nosso, em que se transa com muita gente, não é fácil cultivar a afinidade. Hoje é com João, daqui a pouco é com Antônio, dentro de alguns dias, quem sabe, com José. Não dá tempo para descobrir compatibilidades que não sejam instantâneas. Não se consegue avançar além do óbvio, não se passa da arrebentação. Pode ser gostoso, mas tende a ser parecido e superficial. Cada um entra em campo com as fórmulas que trouxe do passado e se protege atrás delas. Primeiras transas revelam muito pouco, no máximo dão pistas. Quem fica sempre na primeira transa não passa da ante-sala dos outros e de si mesmo.

A conversa em que o sujeito admite que nunca teve um sexo tão gostoso só aparece lá na frente. Requer tempo, relaxamento, entrega. O cara (ou a garota) precisa perceber que está diante de algo especial, e tem de ter espaço para contar. Não é tão fácil nos dias que correm. As relações são muito rápidas e as pessoas ficaram duras. Muitas não querem escutar, não querem saber. Uma declaração de amor – ou uma declaração de prazer – põe o outro na sua vida. Para alguns, pode ser uma intimidade intolerável.

Se você não é assim, se você abriu a porta para que o seu namorado entrasse, dê crédito quando ele disser que você é única. Acredite quando ele, com cara de menino, contar que nunca foi tão gostoso, nunca foi tão intenso, nunca foram tantas vezes num mesmo fim de semana. Aceite o fato que, apesar da fama de safado e da óbvia competência que ele exibe, você é especial para ele – embora nem sempre você mesma se sinta muito especial. Uma das vantagens de se viver no século 21, neste pedaço do planeta em que homens e mulheres são relativamente livres, é poder andar por aí e descobrir, depois de muitas tentativas e alguns erros, uma chave que combina melhor com a sua porta – um corpo, uma voz e um desejo que parecem ter sido feitos para você. Quando isso acontecer, avise. Quando ouvir a mensagem, acredite. A felicidade não é permanente, mas existe.


Carta ao tempo

Dezembro 13, 2011

Texto:  Elisa Lucinda

Mesmo com toda a sua sutileza, sua onipresença divina, sua continuidade e perseverança imperceptíveis, mesmo com seu mistério e seu poder sou Tua macaca de auditório, Deus Tempo, Tua fã. Queria um pôster Teu no meu quarto. Mas de corpo inteiro, não em partes como sempre te vejo, oh Divino. Também porque o seu inteiro é o eterno, não é? Eterno é uma palavra sem fim, sem limites, parente da palavra infinito. São da mesma família e ambas querem dizer do que são maiores que a nossa matemática pode supor. Por observá-lo tanto cada vez mais vou amando o que chamam envelhecer. A gente fica muito mais sabido e vai entendendo como é bem bolada a coisa toda. Com o tempo, ficamos mais descolados, mais espertos, já conhecemos alguns mecanismos de nos iludir, nossos esquemas e funcionamento de erros, vícios, e outras deliciosas fraquezas. A vida é uma grande viagem, e embora não se reconheça tanto o valor do mais velho, este, pela experiência que resulta em sabedoria, vai ganhando autoridade para sentar logo na janela para ganhar outros assentos com privilégios de paisagens. Quando ouço alguém dizer que não quer pôr mais filho nesse mundo cruel, penso, que o mundo se fosse mesmo muito ruim a gente quereria sair logo dele. Mas não. O que nos ocorre, em geral, é uma vontade de ser eterno, uma loucura vampírica com desejo de ser eternamente jovem e principalmente, a obsessão de escapar da morte. O medo dela não é só porque morrer provavelmente doa como processo. O papo é que morrer acaba com a festa. Mãe cruel que tira a gente da brincadeira de viver. O fato de ser matematicamente cada vez mais perto da morte, a velhice angaria más línguas para si. É uma pena. Aos cinquenta e três anos estou me sentindo muito bem. Potente. Estão preservados em mim a Lili, a Elisinha e a Formiguinha Atômica, meus apelidos de infância, a Morena, a Nega, a Lucinda, meus apelidos de universidade, e Preta, Elisa Lucinda, Lucinda, Pretinha e Elisa, a mulher que me tornei. Esse coletivo de estações do Deus Tempo, trago em mim como uma herança. Como quem herdou casas, imóveis de luxo, extensas fazendas com milhares de cabeças de gado, herdei minha criança com sua espontaneidade, seu amor pelos lápis de cor, sua palhaçada, sua disposição para o novo e sua inocência; herdei minha jovem mocinha com sua irreverência, sua vontade de ajudar a melhorar o mundo, seu romantismo, sua esperança radical, sua ousadia em se lançar na estrada da existência na transitoriedade de cada momento. Esses múltiplos personagens que vivem no quintal de meu coração, dando suporte a minha personalidade não vieram sozinhos, veio com eles o rebanho de sonhos. Alguns desses sonhos perderam validade, não resistiram ao futuro que lhes coube. É mesmo muito interessante esse tipo de riqueza que o Tempo nos oferece; a capacidade, a potência de trazer no cofre humano que também atende pelo nome de memória, tudo o que vivemos: amores, prazeres, felicidades, gozos, plenitudes, tudo pode ficar eterno (leia-se eterno aqui como coisa que dura enquanto se vive). Quem pode tirar de mim, meu pai Tempo, as declarações de amor que recebi como mulher, como fêmea,como dama? Quem pode arrancar de mim as amorosas penetrações, os beijos nas mãos, os gestos de delicadezas, as palavras de amor que li nos olhos dos amantes e ouvi nas noites claras de luar? Hein? Me fale, quem poderá? Outro dia pensei em comprar a casa da minha infância lá em Itaquari, e a de Vila Velha, naquela rua linda cheias de árvores. Ainda bem, que em tempo, me lembrei que não preciso comprá-las uma vez que elas estão intactas dentro de mim com todos os seus bem quereres. Se as comprasse agora seria pior para mim; viriam sem minha mãe, minha irmã, meus avós dentro. Seria um péssimo negócio. E para os sofrimentos, que  experimentamos logo ao nascer, há a chuva dos prantos, o escoar da dor, a cicatrização da ferida e depois o esquecimento. Uma beleza! Pois sem esquecer dos sofrimentos como amaríamos de novo, como teríamos coragem?


Desejo de intimidade

Dezembro 9, 2011

Texto:  Ivan Martins (Revista Época)

De vez em quando, muito de vez em quando, eu tenho a impressão de que entendi algo sobre as pessoas que elas mesmas ainda não perceberam. Aconteceu outro dia, no meio de uma conversa banal sobre relacionamentos. Minha interlocutora, muito jovem, reclamava da dificuldade em lidar com os homens depois que eles cruzam uma linha invisível (mas muito real) de desejo.

“Não dá para dizer, simplesmente, que eu curti até ali, quero continuar, mas não tenho vontade de avançar. Eles não entendem”, ela se queixou. “Tem de ser tudo ou nada: ou mando o cara embora ou passo para a próxima etapa, mesmo sem estar com muita vontade.” Às vezes, ela gostaria de ficar nos beijos. Outras vezes, o que ela chamou de “curiosidade” vai mais longe, mas não chega ao ponto de transar. Em outras ocasiões, ela desejaria dizer para o sujeito: “Fica por aqui, me abraça, a gente dorme de conchinha e amanhã voltamos a esse assunto”.

Ela pensa essas coisas, mas não diz. Vai para o tudo ou nada, antecipando que qualquer dos caminhos será insatisfatório.

Embora pareça “conversa de mulher” ou coisa de “gente jovem” (que ainda não descobriu seus próprios limites), a reclamação da moça talvez seja mais universal. Acho que homens e mulheres, jovens e mais velhos, todos são capazes de identificar em si esse sentimento difuso e mal compreendido que a moça expressa – e que eu, por falta de outro nome, chamaria de “desejo de intimidade”.

Ele aparece quando se está tomado de carinho e interesse por alguém, sem que isso, necessariamente, se manifeste como vontade de transar. A pessoa quer se aproximar da outra, beijar, tocar e explorar. É físico, mas tem uma natureza mais afetiva, de aconchego. Pode virar uma transa e, frequentemente, vira – mas não começa assim, e não precisa terminar assim. Às vezes as pessoas não querem que termine, ou não estão prontas para que termine. Se a outra parte insiste demais, azeda. Se a própria pessoa não percebe seus sinais, e avança quando não deveria, também vira um ato forçado, com resultados dolorosos, instantâneos ou posteriores.

Com o “desejo de intimidade” em mente, talvez fique mais fácil entender alguns dos nossos comportamentos – e várias das nossas hesitações.

Tente se lembrar daquela mulher que você levou para jantar na sua casa. Tudo parecia perfeito, mas, na hora em que vocês finalmente aterrissaram no sofá, ela começou a se esquivar. Beijos, sim. Carinhos, sim. Mas, não, ela não iria tirar a roupa. Diante da sua insistência em mudar de marcha e chegar logo à próxima curva, ela saiu da pista: levantou-se, arrumou o vestidinho e foi embora, parecendo mais triste do que indignada.

É difícil entender essas coisas. Por que alguém que parecia querer transar muda de ideia? Por que se pode avançar até aqui e a partir daqui não pode mais? Os homens ficam perplexos com isso. Minha teoria é que talvez a moça tivesse apenas “desejo de intimidade” e não exatamente vontade de transar. Queria ficar juntinho, trocar beijos e agarros, mas com a segurança de que não iria passar daquilo – por quaisquer que fossem as suas razões.

Homens também têm dessas contrariedades. É provável que você, leitor, já tenha se achado na situação de não querer ou não conseguir transar. Já parou para tentar entender o que aconteceu? É possível que, por trás da ausência de rigidez, estivesse o “desejo de intimidade”: você talvez quisesse carinho, aceitação e conchego, mais do que uma boa transa. Acontece. Carências, tristezas ou sentimentos doces em relação à parceira costumam provocar esse tipo de vontade – ou desvontade, dependendo de como se olhe.

Os homens lidam especialmente mal com isso. Para nós, a possibilidade de sexo não realizada é uma broxada, ponto. Palavra devastadora que esconde uma dezena de situações diferentes. Talvez nos faltem outras palavras para lidar com isso, outras ideias. Como “desejo de intimidade”. Se o sujeito puder perceber que está mais ternura do que tesão, mais abraço do que penetração, tem a chance de negociar uma “trégua” com a parceira. Quem sabe ela também não adora a ideia?

Isso nos leva a outra vantagem da nova abordagem, o uso da palavra. Ao contrário do sexo puro e simples, que tende (pelo menos no início das relações) a ser mudo, o “desejo de intimidade” é um estado que permite conversar. Demanda conversa, na verdade. Acho que muitas vezes nos falta isso: colocar os sentimentos na mesa, como eles se apresentam no momento, em vez de seguir a contragosto (ou no piloto automático) um roteiro pré-programado de procedimentos sexuais. Temos inibições em conversar, mas não deveríamos.

Falando, a moça do sofá poderia explicar, sem embaraços, que os amassos estão bons, mas que ela, naquele momento, não gostaria de ir mais longe. “Desejo de intimidade”, sabe como é. O garanhão enternecido poderia fazer o mesmo: definir os limites da sua situação emocional com a parceira, usando uma linguagem que não o envergonhe e nem faça com que ela se sinta indesejável. O “desejo de intimidade” talvez ajude.

Há algo de cômico e pretensioso na ideia de inventar uma expressão nova para definir situações e sentimentos tão velhos que, provavelmente, já foram detectados e nomeados uma centena de vezes – mas não importa. O essencial é apontar a importância de nos livrarmos das convenções e dos automatismos quando se trata da nossa intimidade. O essencial é ter coragem de falar, de se colocar, ainda que os sentimentos do momento pareçam estar muito fora da caixa. O essencial, eu acho, é evitar que os desencontros de corpos e sentimentos nos magoem e nos afastem desnecessariamente.

Há muita vergonha, muito ressentimento e muito pouca conversa quando se trata da nossa intimidade. Falemos uns com os outros, portanto.


Eu preciso

Dezembro 7, 2011

Texto:  Nathalia Ziemkiewicz 

Preciso me alongar. Ser mais flexível. Em todos os sentidos.

Preciso silenciar. Prestar mais atenção ao que está dentro.

Tenho me distraído com coisas fáceis.

Preciso respirar fundo. Inspirar menos do mesmo.

Tédio me tira o fôlego.

Preciso falar mais baixo. Grito e não escuto meus exageros.

As palavras viram zunidos depois.

Preciso beijar melhor. Ando burocrática.

E ele merece mais romantismo.

Preciso parar de roer as unhas.

Quero vê-las sobreviver a minha ansiedade assassina.

Preciso tolerar defeitos. Meus e dos outros.

Qualidade difícil essa.

Preciso reduzir para um décimo meu perfeccionismo.

As coisas nem sempre saem como gostaria, eu sei. Mas ainda frustam.

Preciso saborear as conquistas. Me cumprimentar por elas.

Costumo trocá-las por novos desafios.

Preciso me descomplicar.

Aceitar o que não posso compreender, o que não consigo ser,

o que talvez não tenha solução.

Simples assim.


Três dias para ver

Dezembro 3, 2011

O que você olharia se tivesse apenas três dias de visão?

Helen Keller, cega e surda desde bebê, dá a sua resposta neste belo ensaio, publicado no Reader’s Digest (Seleções)

Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. “Nada de especial”, foi à resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo tacto encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero de um pinheiro.
Na primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
As vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias.
Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo “ver” as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
O primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo, imprimindo em minha mente as provas exteriores da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa e inocente que precede a consciência individual dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros mais profundos da vida humana. E gostaria de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottie terrier e o vigoroso dinamarquês.
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não conseguiria dormir.
No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao empolgante milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra adormecida.
Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do homem, visitaria os museus. Ali meus olhos veriam a história condensada da Terra — os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças de dinossauros e mastodontes que vagavam pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino animal.
Minha parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas esculpidos da antiga terra do Nilo. Já senti pelo tacto as cópias dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me são caras, pois também ele conheceu a cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo tacto. Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico mundo da pintura me seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para se apreciar a arte, real e profundamente, é preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da cor. Se eu tivesse a visão, ficaria muito feliz por me entregar a um estudo tão fascinante.
À noite de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet ou o tempestuoso Falstaff no colorido cenário elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso imaginar vagamente a graça de uma bailarina, como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso.
Imagino que o movimento cadenciado seja um dos espetáculos mais agradáveis do mundo. Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão encantadora, deve ser mesmo muito mais forte a emoção de ver a graça em movimento.
Na manhã seguinte, ávida por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora. Hoje, o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho, nos ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas, tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação e me orgulho. Vejo o sofrimento e me compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo apenas um caleidoscópio fervilhando de cores. Tenho certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular, da qual eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse enxergar, eu seria como a maioria das mulheres – interessadas demais na moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio à massa.
Da 5ª Avenida dou um giro pela cidade – vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam. Viajo pelo mundo visitando os bairros estrangeiros. E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa descobrir como as pessoas vivem e trabalham, e compreendê-las melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas restantes, mas acho que na noite desse último dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria visto tudo que queria ver. Só quando as trevas descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Mas sei que, se encarasse esse destino, usaria seus olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse em seu campo visual.
Então, finalmente, você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o mesmo se aplica aos outros sentidos.
Ouça a música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem cada objeto como se amanhã perdessem o tacto. Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem ao máximo todos os sentidos; goze de todas as facetas do prazer e da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contacto fornecidos pela natureza. Mas, de todos os sentidos, estou certa de que a visão deve ser o mais delicioso.